Entrevista com a Dra. Mônica Schpun - o interesse, as fontes, e formas de olhar para pesquisar a Justa Aracy de Carvalho
Entrevista por
Wendell P. Machado Cordovil
Nascida no Paraná em 1908, no sábado do dia 05 de dezembro, Aracy Moebius de Carvalho era filha da alemã Sidonie Moebius de Carvalho e de Amadeus Anselmo de Carvalho, luso-brasileiro. Hoje é reconhecida pela sua atuação no Consulado do Brasil em Hamburgo (Alemanha), entre 1936 e 1942. Quando funcionária em Hamburgo, Aracy de Carvalho facilitou vistos de migração para judeus em um momento no qual a Alemanha estava sob a Ditadura Nazista e o Brasil vivia o governo ditatorial Varguista. Por sua atuação, Aracy ganhou reconhecimento do Memorial do Holocausto, Yad Vashem, em Israel e também no Museu do Holocausto de Washington, nos Estados Unidos.
Recentemente Aracy de Carvalho ganhou grande destaque para o público em geral por conta da série "Angel of Hamburg", produção da parceira entre Globo e Sony. A obra, criada por Mario Teixeira e dirigida por Jayme Monjardim, foi exibida recentemente no Brasil com o título de "Passaporte para a liberdade" e teve Sophie Charlotte no papel de Aracy de Carvalho. No entanto, com o lançamento da série no Brasil também ganhou espaço uma discussão sobre a atuação histórica de Aracy de Carvalho. O "Embasamento histórico" se tornou até mesmo tópico no verbete da série no Wikipédia. Sabendo que a série foi livremente baseada no livro "Justa - Aracy de Carvalho e o resgate dos judeus: trocando a Alemanha pelo Brasil", realizamos alguns questionamentos por e-mail para a autora - a Doutora Mônica Raisa Schpun, historiadora e pesquisadora do "Centre de Recherches sur le Brésil Contemporain (CRBC)" na França. A entrevista pretendeu saber sobre como surgiu o interesse da Doutora Schpun na pesquisa sobre Aracy de Carvalho, assim como indagar a respeito das fontes utilizadas na investigação. Também foi ponto os recentes questionamentos sobre a real atuação de Aracy de Carvalho na Alemanha nazista.
Em outras entrevistas e palestras da Doutora Mônica Schpun, ela se preocupa em destacar que apesar da emissora ter comprado os direitos de sua obra, para elaboração da série, não teve participação no desenvolvimento da série, que é de ficção. Inclusive comenta que o uso do termo "Anjo de Hamburgo" para descrever Aracy de Carvalho é recente. Além disso, pontua que seu livro não é uma biografia sobre Aracy de Carvalho, mas trata das "migrações cruzadas" e amizade entre Aracy e Margarethe Levy - uma das pessoas a quem Aracy de Carvalho ajudou a partir da Alemanha para o Brasil e com a qual manteve longa amizade. Também se preocupa em afirmar a importância de Aracy, mas chama atenção para que qualquer quantificação de pessoas salvas é irreal, e baseada no Talmud ressalta que "Quem salva uma vida salva o mundo inteiro". A seguir, as perguntas realizadas e as respostas da Dra. Mônica Raisa Schpun - a qual agradecemos muito a disponibilidade em nos responder.
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Doutora Mônica Schpun. Fonte: rfi.rf |
Doutora, como a senhora chegou a se interessar em pesquisar sobre Aracy de Carvalho?
Dra. Schpun - Sou uma especialista em história do gênero e da imigração. Quando tomei conhecimento da existência desta Justa brasileira, o tema me atraiu particularmente, por poder reunir os dois eixos maiores do meu percurso em uma pesquisa que resultou na minha livre-docência. Construí a pesquisa desse modo, acrescentando a perspectiva da micro-história, ou da história "vista por baixo", que também me é cara. O livro não é uma biografia de Aracy de Carvalho, mas se concentra no período em que ela viveu na Alemanha, o "tempo forte" da trajetória dela. Foi quando ela exerceu um papel que lhe trouxe uma projeção pública, além de ter vivido, na esfera íntima, uma guinada importante, pois foi em Hamburgo que conheceu João Guimarães Rosa, seu segundo marido.
Segundo o desenho traçado para essa pesquisa, Aracy de Carvalho ocupa, em meu livro, o centro de uma constelação da qual também faz parte um pequeno grupo de judeus alemães que ela ajudou, cujos percursos migratórios segui, da Alemanha para o Brasil.
Dentro disso, o fio condutor do livro é dado pelas migrações cruzadas entre Aracy de Carvalho e Margarethe Levy (a primeira do Brasil para a Alemanha e volta, a segunda da Alemanha para o Brasil) e pela longa amizade que as reuniu, durante mais de 70 anos. Trata-se de duas mulheres cuja origem, perfil socioeconômico e bagagem cultural eram extremamente diversos. Elas nunca teriam se encontrado, e ainda menos se tornado amigas, se não fosse o contexto excepcional e dramático que levou Margarethe Levy ao consulado brasileiro de Hamburgo, onde trabalhava Aracy de Carvalho.
Quais as fontes documentais utilizadas em sua investigação?
Dra. Schpun - Utilizei sobretudo fontes brasileiras e alemãs. Do lado brasileiro, trabalhei com fontes diplomáticas (listas de vistos, correspondência) e com os dossiês nominativos de regularização da permanência dos refugiados cujos percursos segui (que estão no Arquivo Nacional). Trabalhei também com os arquivos pessoais de Aracy de Carvalho (no IEB-USP e com a família). Entrevistei muita gente e as famílias disponibilizaram, em alguns casos, documentos pessoais.
Do lado alemão, trabalhei com dois dossiês nominativos para os refugiados que figuram no livro. Em primeiro lugar, o dossiê composto no momento da emigração, sob responsabilidade da Gestapo, que acompanha a perseguição e as dificuldades vividas entre 1933 e o momento da partida (no caso dos refugiados que segui, em 1938-39). Em seguida, trabalhei com o dossiê aberto nos anos 1950, para a compensação de guerra, após as leis de Adenauer. O que permitiu examinar como cada um contava sua história, já do Brasil, revendo seu percurso e reivindicando compensação. Utilizei, ainda, os arquivos da comunidade judaica de Hamburgo. E, para questões mais pontuais, recorri a outros arquivos alemães.
Enfim, consultei, em Israel, o dossiê de Yad Vashem de Aracy de Carvalho.
Recentemente a exibição no Brasil da série "O Anjo de Hamburgo" ("Angel of Hamburg" no original, "Passaporte para Liberdade" no Brasil) realizada em parceria entre Globo e Sony causou polêmica. Os historiadores Dr. Fábio Koifman e Rui Afonso deram entrevista à BBC negando a atuação de Aracy de Carvalho para além da burocracia oficial. A argumentação dos pesquisadores parece contestar o Museu do Holocausto, que atribui para Aracy de Carvalho o título de "Justa". Sua pesquisa estaria endossando os resultados dos pesquisadores do Museu do Holocausto ou do Dr. Koifman e Rui Afonso?
Dra. Schpun - Minha pesquisa indicou que Aracy de Carvalho fez de fato algumas irregularidades nos vistos, que mapeei durante a pesquisa. Por exemplo: havia 7 consulados no Reich (incluindo Viena, após o Anschluss de março de 1938), cada um com sua circunscrição. Em dois casos que estudei, tratava-se de pessoas que não viviam em Hamburgo ou na circunscrição do consulado, devendo pedir vistos em outra representação brasileira. Mas os vistos foram concedidos ali. Em outro caso, apareceu uma interlocução entre Aracy e a companhia de navegação: uma família cujo marido estava detido em Buchenwald desde a Noite de Cristal e para a qual os vistos foram concedidos sem que se apresentassem ao consulado. Enfim, em um terceiro caso, o de Margarethe Levy, foi usada a brecha prevista para os judeus empresários, prontos a investir no Brasil uma quantia precisa, estabelecida por uma circular secreta varguista. Mas Margarethe não conseguiu reunir a soma toda e o visto foi preenchido de modo levemente diferente, não respeitando exatamente o que previa o texto da circular. Trata-se de pequenas irregularidades, "pelas bordas", mas elas foram significativas para os interessados, que corriam risco de vida, salvou-os de fato. E demonstram a disponibilidade e a atenção que Aracy dedicou à questão, com criatividade e empenho, sem trabalhar ao pé da letra, como ocorria na esmagadora maioria das representações diplomáticas (e não somente brasileiras).
Além disso, no dossiê de Yad Vashem existe uma carta significativa, assinada pelo responsável do escritório de emigração da comunidade judaica de Hamburgo. A carta foi escrita no final de 1941, quando os nazistas estavam fechando as fronteiras e deixando para trás a política da Alemanha "livre de judeus", que os empurrara a emigrar (as deportações começaram na Alemanha ainda no final de 1941). Antes de fechar seu escritório, esse líder comunitário, que apoiou sua comunidade até o final, tendo sido deportado e assassinado com a família em seguida, escreveu uma carta de agradecimento pessoal a Aracy de Carvalho. Ou seja, como no caso da companhia de navegação, mas de modo mais significativo, Aracy de Carvalho tinha uma interlocução coletiva com os judeus de Hamburgo, para além daqueles que se apresentavam individualmente ao consulado. Claramente, a comunidade organizada estava enviando a ela candidatos a emigração, reconhecendo que ali havia maiores chances de deixar o país. Não faz diferença o fato de que havia vistos previstos para essas pessoas: em muitos consulados, brasileiros ou outros, existia essa possibilidade, que em muitos casos não chegou a ser totalmente usada por conta do antissemitismo reinante. As quotas americanas, por exemplo, muito maiores do que as brasileiras, nunca foram totalmente esgotadas naqueles anos, por determinação secreta (que hoje se conhece) da parte do Departamento de Estado.
Enfim, completo dizendo que de um lado parece-me ingênuo diminuir a seriedade de Yad Vashem, instituição que conhece perfeitamente a questão e que decide há décadas, segundo um protocolo bastante preciso, quem recebe ou não esse título. Existem muitos estudos sobre o assunto. E, de outro lado, acredito que para avaliar o papel de Aracy de Carvalho, não basta examinar unicamente fontes brasileiras: o conhecimento de um contexto mais amplo e comparativo me parece indispensável.
A partir dos resultados de suas investigações, Aracy de Carvalho seria digna do título que recebeu ou o "Anjo de Hamburgo" é uma construção a partir do cenário que o Dr. Koifman descreve, no qual "As pessoas estavam assustadas, foram ao consulado, uma pessoa que falava alemão as recebeu com educação e encaminhou seu pedido. Depois, aconteceu o Holocausto e elas entenderam que aquele visto salvou a vida delas. É natural que eles sejam gratos a ela"(segundo entrevista para a BBC)?
Dra. Schpun - Como disse acima, me parece ingênuo contestar o tratamento dado à questão por Yad Vashem. Vale lembrar que o dossiê de Aracy de Carvalho foi apresentado duas vezes. Na primeira vez, foi considerado insuficiente e recusado. Na segunda, com depoimentos mais longos e, sobretudo, a carta endereçada a ela pelo líder comunitário hamburguês, foi aprovada.
Isso dito, Aracy nunca foi conhecida como "Anjo de Hamburgo". Essa apelação foi inventada muito depois, no Brasil.
Para finalizar, como a senhora acredita que Aracy de Carvalho deve ser entendida pela historiografia?
Dra. Schpun - Tudo depende da questão que o historiador coloca. No meu caso, busquei mostrar como, ao tentar resolver uma configuração pessoal de vida (seu desquite no Brasil, que a fez se afastar da sociedade provinciana em que vivia, instalando-se na casa da tia, que vivia na Alemanha), Aracy de Carvalho encontrou-se diante de uma experiência radical. Em 1934, desembarcou na Alemanha já nazificada. E, ao buscar um emprego, para providenciar as suas necessidades e as do filho, sem mais pesar no orçamento e na vida de sua tia, podendo viver de maneira independente, acabou ocupando uma posição chave para muitos judeus que buscavam desesperadamente um porto seguro. A situação obrigou-a a tomar posição cotidianamente, como todos aqueles que conviviam com a população judaica em diversos serviços e comércios. A neutralidade não existe evidentemente. Para falar dos injustos, precisaríamos de anos. Para falar dos justos, bastam alguns minutos, foram poucos. O mais fácil é sempre olhar para o outro lado e fingir não ver. Aracy não aceitou tal facilidade, isso é claro. Para os judeus brasileiros é significativo. E para os demais brasileiros também, em um momento de emergência do antissemitismo no país, inclusive por altos representantes do Estado. Lembrar dessa brasileira para quem a humanidade era uma sós, sem fronteiras étnicas (e ainda menos "raciais"), que manteve-se digna num mundo indigno, deve ser fonte de orgulho. Aprendi com a orientadora do meu doutorado, Michelle Perrot, há muitos anos trás, que, enquanto historiadores, devemos ser sempre muito ambiciosos, "pensar grande", no sentido profundo do termo. Cai como uma luva para o caso presente: enquanto historiadores, não sejamos mesquinhos e pequenos, mas ambiciosos, como o foi Aracy de Carvalho, capaz de olhar longe, bem além de si própria.
Aracy Moebius de Carvalho. Fonte: reprodução. |
Referências:
Entrevista realizada por e-mail com a Doutora Mônica Schpun, 05 de janeiro de 2022.
Entrevista da Dra. Mônica Schpun para rfi, publicado em 20/12/2021. Disponível em: https://www.rfi.fr/br/podcasts/rfi-convida/20211220-brasileira-que-salvou-judeus-do-nazismo-pa%C3%ADs-precisa-de-mais-aracys-de-carvalho-diz-historiadora
Participação da Dra. Mônica Schpun em Debate do Museu do Holocausto de Curitiba, em 07 de jul. de 2020. Disponível em: https://www.facebook.com/MuseuShoaCuritiba/videos/896766317496949
CYTRYNOWICZ, Roney. Justa Aracy de Carvalho e o resgate de Judeus: Trocando a Alemanha nazista pelo Brasil. MONICA RAISA SCHPUN: Civilizacao Brasileira, 2011. 2012.SCHPUN, Mônica Raisa. Aracy de Carvalho et Margarethe Levy : une amitié née dans l’urgence (Hambourg, 1938), Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Colloques, mis en ligne le 16 mars 2006. Disponível em: http://journals.openedition.org/nuevomundo/2021
SCHPUN, Mônica Raisa. Justa - Aracy de Carvalho e o resgate de judeus: Trocando a Alemanha nazista pelo Brasil. Civilização Brasileira, 2011.
SCHPUN, Mônica Raisa. Aracy Moebius de Carvalho Tess e Maria Margarethe Bretel Levy: História de um happy-end transatlântico. Sin fronteras. Encuentros de mujeres y hombres entre América y Europa, siglos XIX-XX, p. 223-241, 2008. Disponível em: https://publications.iai.spk-berlin.de/servlets/MCRFileNodeServlet/Document_derivate_00001038/BIA_123_223_241.pdf
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