Belém e os urubus: entre sobressaltos e gratidão, as representações do urubu em favor de políticas de higienização da cidade (1870-1883)
Wendell P.
Machado Cordovil*
Urubu
sobrevoando
Eu logo pude
prever
Parece que vai
chover
Parece que vai
chover[i]
A
cidade de Belém, capital do Estado do Pará, é o segundo município mais populoso
da região Norte do Brasil e o primeiro do Estado- segundo dados do IBGE de
2017. Com uma história que remonta desde o período colonial, Belém viveu
diferentes continuidades e rupturas para a construção do que hoje é a cidade. Nesses
processos históricos, as relações dos moradores da cidade não são construídas
exclusivamente com humanos. Para além desses personagens a história da região
também é construída com os rios e lagos, com os alimentos importados e
exportados, com as árvores e as florestas, e também com animais não humanos.
Um
dos personagens não humanos que pode ser observado ao longo dos processos
históricos em Belém é o urubu. Essa ave muitas vezes está associada ao agouro –
não tanto quanto a coruja branca – mas também é bastante utilizado como
ferramenta meteorológica. O voo baixo do urubu de cabeça preta é realizado
quando esse encontra correntes de ar ascendente, indício que o ar quente está
subindo e consequentemente as chuvas podem iniciar.
Nos
dias atuais a presença do urubu pela cidade é algo natural aos olhos. Tanto
daqueles que frequentam o Ver-o-Peso para almoçar, dos pescadores que
atracam seus barcos no cais, ou mesmo os que somente passam de ônibus pelo local.
Visão comum também em vários pontos da cidade em que se acumula lixo descartado
de forma errada, ou mesmo na Praça Batista Campus descansando ao lado das garças.
O urubu de cabeça preta, “apelidado” pelos cientistas de Coragyps Atratus, é uma figura emblemática no convívio
cotidiano da cidade de Belém. Repugnados por alguns que visitam a cidade a
passeio, compreendidos por poucos, e ignorados por outros, os urubus fazem
parte das relações rotineiras em Belém, quer queiram os humanos quer não.
Esse
voador sujeito emblemático não é realidade somente atual na paisagem e vivência
da cidade. Diversas representações feitas de Belém apresentam essa ave como um
dos personagens locais.
Um
exemplo disso é a música que iniciou esse texto. Composição da cantora regional
Dona Onete, a música retrata justamente a presença desse animal na realidade do
dia a dia em Belém. Na música, retratado como o malandro namorado da garça, o
compadre urubu foi passear para a região do Marajó. Na ilha, ele poderia comer
de tudo, mas vivia triste. Quando questionado por outro urubu sobre o motivo
para a tristeza, respondeu que estava com saudade de sua branca – sua namorada
garça – e também do Ver-o-Peso, além da “sacanagem”. Ainda acrescenta que em
Belém ele é um “pop star” e fica bem nas fotos, entrevistas e reportagens. Tudo
isso “No meio do pitiú”.
A representação do
urubu não se atém somente na música regional atual, a significação da figura
dessa ave também aparece em representações da cidade em séculos anteriores. No
século XIX, por exemplo, o pintor Joseph Léon Righini se fixa no Brasil em 1857 e
desenha um álbum com doze litografias do Pará. Intitulado “Panorama do Pará em
Doze Vistas”, foi publicado em 1867. Nessas vistas do pintor sobre o Pará, mais
especificamente Belém, um dos personagens que bastante aparece é o urubu. Nos
desenhos, o animal observa do céu as pessoas, edifícios e vegetação
representadas por Righini.
Estrada do Arsenal da Marinha. Desenho de Joseph
Léon Righini. Fonte: http://www.ufpa.br/cma/imagenscma.html
A
imagem acima é um exemplo onde é possível perceber a presença das aves
sobrevoando no céu da cidade de Belém. No
século XIX essa ave também já era habitual para os moradores. Em alguns
momentos era tida como problema, em outros como a salvação. Na lógica de
higienização de Belém no século XIX, como é comentado por Tunai Almeida (2013),
já se apresentava a preocupação do Conselho Municipal com o descarte incorreto
de cadáveres de animais ou qualquer tipo de carne deteriorada em locais que não
fossem os estipulados pela municipalidade. Entretanto, como também é comentado
por Tunai, o enterro de animais acontecia bastante em locais desapropriados,
algo que incomodava moradores que posteriormente realizavam denúncias. Essa
situação de enterro em locais não próprios já se mostrava um incômodo, mas e
quando o animal não possuía alguém que se dispusesse de lhe cavar uma devida
cova? Suas carnes ficavam expostas entre as ruas de Belém, e essa era uma
reclamação que, pelo que as fontes indicam, se fazia bastante presente no
período. Com a negligência da gestão local sobre esses casos, a figura que aparece
como salvação para a higiene é o urubu.
Com uma investigação nos jornais de 1870 a 1899, foi possível perceber um pouco dessa preocupação local dos moradores
sobre os animais mortos que apareciam em diferentes ruas de Belém. Incômodo que
era acentuado pela falta de reação da gestão da cidade em tentar solucionar
esse problema.
Em
uma notícia do jornal DIÁRIO DE BELÉM, de 28 de fevereiro de 1871, é feito uma
crítica a câmara municipal “do sr. dr. Malcher”, de Belém, sobre “um immenso
gato a desfazer-se lentamente em podridão” na rua Formosa, entre as Travessas
S. Matheus e do Passinho. Segundo o jornal, desde o dia 22 do mês corrente
qualquer um que passasse pela rua teria que “recuar e arripiar carreira, ou
tapar o nariz com um lenço”, pois o animal, já em avançado estado de
decomposição, exalava um odor muito incômodo. Acentuando a crítica o jornal
comenta que o próprio sr. dr. Malcher atolou as patas de seu cavalo – chamado pelo
jornal de rocinante – nas entranhas “putrefactas” do animal. A notícia
acrescenta que o viram cuspir muito, mas mesmo dessa forma ele não tomou
atitude e o gato continuou no mesmo lugar.
No
fim da notícia, após o jornal comentar que uma chuva levou o cadáver para a
travessa S. Matheus, a figura do urubu não somente é citada como também
exaltada em contradição aos agentes públicos. O jornal afirma que “A caridade
dos urubús é finalmente que acaba de socorrer-nos, pois que lhe estava fazendo
o enterro”. Nessa notícia é nítida a crítica do jornal sobre a gestão de
Malcher. Coloca-o como totalmente indiferente aos problemas de higiene da
cidade, onde nem mesmo ao atolar seu cavalo e cuspir de nojo ao ver o problema
toma algum tipo de atitude.
Em
uma notícia posterior também no Diário de Belém, de 07 de março de 1871, rememora
o caso do cadáver do gato que incomodou moradores com “o cheiro de podridão”.
Mas nesse caso tem o objetivo de informar outro cadáver de animal em estado de
decomposição, bem maior que o anterior – como é dito pelo próprio jornal. Ao
invés de um gato o que se encontrava há dois ou três dias na rua S. Vicente era
um cavalo morto. Entre as travessas da Gloria e da Princeza estava o cavalo se
desfazendo “como se desfazia o gato”, e exalando “o necessário fedor”.
Em
seguida o jornal afirma que é atribuição da câmara a responsabilidade sobre a
limpeza das ruas. Comenta que a câmara tem seus fiscais e esses seriam os
responsáveis por “correr as ruas” e executar com seus deveres. Logo após isso o
jornal afirma que assim como o gato não encontrou um fiscal que o removesse o
cavalo também não, e segundo a notícia “ali há de acabar por confundir-se com
pó”.
Ainda
comenta que os urubus conseguiam livrar a cidade do cadáver do gato, porém por
conta de o cavalo ser um animal de porte maior e com fibras rijas, só Deus
sabia como se faria a retirada do animal. Solicita também ao sr. dr. Malcher, “que
anda sempre á cavallo”, que olhe para essas coisas. Além de pedir que ele abra
os olhos “á sua gente e aos seus fiscaes”, e “chame-os ao cumprimento de seus
deveres”, para que dessa forma “procure não desmentir esses elogios bombasticos
que diariamente lhe tece o orgão de seu partido”.
Ao
fim da notícia ainda alfineta-o dizendo que “O Tira-Dentes disse ha poucos dias
que os liberaes são myopes” e pediu que Malcher “Prove-lhe agora v. s., sr.
presidente da camara, que o chefe desse partido ainda encherga um cavallo morto”.
Novamente
nessa matéria é nítida a crítica para a gestão de Malcher sobre a questão de
higiene da cidade de Belém. Aprofunda o problema utilizando a representação dos
urubus ao dizer que nesse caso nem mesmo eles – que outrora apareceram como os
únicos competentes – conseguiriam livrar a cidade do cadáver do cavalo.
Outra
representação dos urubus sendo utilizada como crítica contra os problemas de
higiene da cidade pode ser observada no Jornal LUZ DA VERDADE, de 23 de janeiro
de 1873. Em uma crítica contra “A nova camarilha” que “não encontrado dinheiro
nos cofres da municipalidade” começou a “agarrar quanto carneiro, cabras,
porcos, cães, galinhas, patos, perús, etc., há nesta cidade”. Logo após isso o
jornal comenta que esses mesmos não dão atenção para outro animal, afirma que “Esqueceram-se
dos urubus” e coloca-os como “ave indecente que actualmente traz o respeitavel publico
a sobressaltos ao passar na travessa S. Matheus e estrada do Arsenal, onde os
nobres auxiliares dos srs. fiscaes teem morada”. Na notícia é possível analisar
que a figura do urubu é utilizada no jornal para expor os problemas da política
de higienização da cidade, onde nem mesmo próximo a morada dos auxiliares do
fiscaes – que deveriam cumprir seus deveres sendo um desses a limpeza da cidade
– as aves deixam de se acumular e assustam os que passam.
Já
em 24 de fevereiro de 1873, no SANTO OFFICIO, o Tribunal do Santo Officio fazia
algumas solicitações “Á vereação do municipio”. Também faz a reclamação e o
pedido para que atentem as faltas que a câmara estava cometendo, como não se
importar com a conservação das estradas e ruas nem a limpeza da cidade. Em
seguida comenta que sobre a limpeza da cidade ainda possuíam muito a falar já
que “é rara a rua onde não se encontre um animal morto”. Logo após enfatiza que
“se não fosse o zelo dos urubús fácil é prever-se os incalculaveis males que
dahi resultam aos munícipes, máxime na quadra epidemica que se atravessa”.
Novamente
aqui os urubus aparecem como “salvadores” da cidade. A representação deles é
utilizada para cobrar atitudes e expor a negligência da gestão de Belém sobre a
limpeza das ruas.
Em
março de 1873, novamente o SANTO OFFICIO cobra atitudes da câmara municipal e
questiona se ela “está atacada de lethargia ou paralysia”. Reclama as promessas
que eram feitas para serem executadas logo após o assumir da administração do
município. A principal preocupação reclamada à câmara é sobre a limpeza das
ruas que “estão intransitaveis”. Ainda acrescenta que os fiscais são pagos para
realizar um trabalho que só é realmente efetivado pelos urubus. Afirma que os
urubus é que “cuidam com muito zelo da limpeza da cidade”. É comentado dos
serviços “relevantissimos” que os urubus haviam prestado à cidade, e que o
único privilégio que a lei municipal fornece para esses é uma garantia à vida, “e
seria uma ingratidão matar-se esses desinteressados agentes municipaes, que
velam pela boa limpeza da cidade”. Termina acrescentando que “Este Santo Tribunal
pede a camara duas cousas: que zele pela vida dos urubús, e que tome qualquer
antídoto contra seu ataque de incuria”.
Os
urubus são usados pelo SANTO OFFICIO para criticar a gestão municipal para com
a limpeza de Belém, onde são até mesmo considerados mais importantes que os
agentes da câmara. Ao pedir o zelo pela vida dessas aves, e que a câmara
cure-se de seu desleixo, o pedido critica a gestão defendendo que os urubus são
os principais responsáveis pela higiene da cidade em quanto os verdadeiros agentes
municipais encontram-se adoecidos.
Outro
caso bem interessante é um que se encontra no DIÁRIO DE BELÉM, de 28 de
fevereiro de 1883. O jornal expôs um suposto pedido de um de seus assinantes.
Em forma de poema o tal assinante pedia:
Valha-nos Deus e o urubu,
N’esta quadra de agonia
Já que quem póde não quer,
Livrar-nos da asphyxia.
Na rua de Santo Antônio,
Ha tantos dias está,
Um cachorro apodrecido
Que de odor nos matará.
E a nossa edilidade
Que muros manda fazer,
Deixa ali o pobre bicho
Aos urubus p’ra comer.
Há quatro dias que passo,
As mais negras inclemencias,
Não sahio á rua, não posso,
Já padeço de esquenencias.
Decididamente morro
E comigo toda a gente,
Não ha fiscal nessa terra
Todos dormem docemente...
No
poema a figura do urubu aparece novamente como central para a limpeza da cidade.
Já que os agentes municipais não faziam nada, quem fazia algo era Deus e o
urubu. O odor do animal morto, dessa vez um cachorro, aparece de novo causando
inquietação e incômodo. O eu lírico do poema comenta ainda que já nem mesmo
pode sair de casa, pois se encontra doente e com certeza vai morrer, assim como
todos da cidade, isso por causa de o lugar não possuir nenhum fiscal para tomar
conta da limpeza das ruas. Todos os agentes públicos dormem em quanto os populares rogam a
Deus e ao urubu pela manutenção da higiene de Belém.
Outros
casos em jornais também mostram a preocupação com a limpeza da cidade e reclamação
com o descaso da gestão utilizando a representação do urubu para realizar a
crítica social, mas me atenho somente nesses para mostrar um pouco sobre essa
dinâmica do período. A presença do urubu permanece até hoje na cidade de Belém,
as percepções e representações sobre ele algumas vezes se assemelham a essas
aqui apresentadas. Mas o que parece claro é que como agente ambiental o urubu foi
de muita utilidade para a sociedade belenense do século XIX, e em alguns momentos
recebia os créditos por isso, servindo também como pilar de crítica contra a
câmara municipal do período. Sorte da humanidade de Belém no século XIX pela
resistência do organismo dos urubus contra as bactérias e toxinas existentes na
carne de animais em decomposição. Se os agentes municipais não agiam, sobrava
para esses personagens históricos e agentes ambientais.
Referências:
*Wendell P. Machado Cordovil é graduando de licenciatura em história pela Universidade Federal do Pará - Campus Ananindeua, bolsista PIBIC do projeto "História e Educação Ambiental nas escolas de Ananindeua", coordenado pelo Prof. Dr. Wesley Oliveira Kettle.
ALMEIDA, Tunai Rehm Costa
de. Belém, uma história Ambiental: Representações da Natureza na capital
paraense (1897 a 1902). In: XXVII
Simpósio Nacional de história: Conhecimento histórico e diálogo social. Natal
(RN). 2013. Disponível em: http://snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364772276_ARQUIVO_historiaambiental-anpuh.pdf
Acesso em: 11/07/2018.
SILVEIRA, Flávio Leonel Abreu da; SILVA, Matheus Henrique
Pereira da. Urubus-de-cabeça-preta (coragyps atratus), garças-brancas-grandes
(ardea alba) e peixeiros na pedra do peixe: experiências conviviais interespecíficas
na cidade. ILUMINURAS, v. 18, n. 45.
SILVEIRA, L. S. Um olhar
sobre os Urubus. Cães & Cia, v. 383, p. 54-55, 2012.
Todos os jornais citados no
texto foram acessados a partir do site da Biblioteca Nacional em sua hemeroteca
digital.
[i] Trecho da música “No Meio do
Pitiú” de Dona Onete. Pitiú é uma expressão comumente utilizada para se referir
a odores de peixes, mas também pode se referir a outros maus cheiros.
Excelente texto :)
ResponderExcluirMuito obrigado.
ExcluirSempre retorno para ler. Amo esse texto
ResponderExcluirHahahahaha.
ExcluirObrigado
Poxa, pensei ter publicado meu comentário! Mas, não me custa considerar a escrita madura de um jovem historiador! Parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigado.
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